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  • Santana do Ipanema, 18/09/2024
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A censura a serviço do patrimonialismo

Foto: Tumisu por Pixabay
A censura a serviço do patrimonialismo
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A onda de censura que hoje ameaça acometer países ocidentais é antes de tudo um produto da cultura woke, numa ponta, e de uma desconfiança das mídias sociais por parte das elites políticas, resultando em um desejo de controlá-las, na outra. Não é um fenômeno exclusivo do Brasil, portanto. O que talvez seja singular em nosso país é a permeabilidade da censura, explicada não só pelos mecanismos típicos e mais globais de institucionalização da cultura woke, mas algo muito mais enraizado.

Em sua magnífica obra Os Donos do Poder, Raymundo Faoro adapta um conceito de Max Weber para analisar a relação histórica do poder na sociedade brasileira (iniciando a análise na sociedade portuguesa). O chamado patrimonialismo pode, de forma mais simplificada, ser entendido como a confusão entre o público e o privado, ou seja, o uso da coisa pública como se fosse privada por aqueles que se sentem autorizados a fazer isso por serem verdadeiros “donos do poder”.

Já disse que o avanço das tentativas de censura interessa a elites políticas em diferentes países, o que se dá por uma razão muito simples: calar os críticos e perseguir oponentes — a cultura woke acaba sendo a desculpa perfeita, bem como o combate à “extrema-direita”; mas, no Brasil, além dessa óbvia motivação, temos o adendo de que não é a elite política propriamente quem está protagonizando o cerco à liberdade de expressão, e sim o Judiciário (embora apoiado por muitos partidos, políticos e, claro, o governo petista). As razões para isso já foram esmiuçadas, mas basta dizer que é evidente que, uma vez concedido (autoconcedido nesse caso) um incremento do poder da suprema corte, esta não iria retroceder dessa hipertrofia. Creio que os fatos atestam que, para além da explicação mais simplista e também verdadeira, o “gosto pelo poder”, a permeabilidade e continuidade da censura podem também ser entendidos levando em consideração o patrimonialismo, já que os patrimonialistas são potencialmente beneficiários da censura, e também em face do fato de que ele se refere ao Estado como um todo, não apenas às classes políticas. Evidência clara disso é a disseminação do expediente e o uso da censura por agentes além dos próprios ministros.

Se um modus operandi que temos reputado como abusivo e ilegal segue sendo não só incontestado, mas apoiado corporativamente pela atual composição do STF, é porque seus integrantes passaram a vê-lo como pessoalmente benéfico. Não tenho dúvidas de que todos eles sabem que o colega Alexandre de Moraes se vale de muita retórica para torcer a Constituição e ignorar a lei, mas, se eles mesmos aceitaram o papel de cumplicidade, não foi apenas por uma orientação missionária de “salvar a democracia”; não, a continuidade do arbítrio, o “salvamento eterno da democracia”, aponta para outra coisa. Encontramos uma possível resposta em uma matéria da Veja de maio deste ano. De forma reservada, juízes da Suprema Corte comentaram a redução dos ataques, críticas e xingamentos devido à atuação de Moraes. Tal fato não se deu devido a uma redução da impopularidade da corte, na casa dos 28% na data referida, mas ao “receio de eventuais punições”. Um dos ministros, chegou a resumir: “Acima de tudo, há um sentimento de gratidão por podermos voltar a andar na rua”.

Ora, o que pode ser mais pessoal do que um sentimento de “gratidão”? Teríamos aqui, no conforto com o qual os ministros caminham nas ruas, uma justificativa para o modus operandi de Moraes? Então o arbítrio se justifica ao satisfazer às aspirações pessoais dos ministros — isto é, de terem o bônus de uma vida pública sem o ônus? Pretender que as engrenagens do Estado se movam em detrimento de uns para o benefício pessoal de outros, ou que cabe falar em gratidão pessoal, justamente diante daquilo que tão apropriadamente tem gerado críticas à atuação do STF, é patrimonialismo puro e confesso.

Engana-se, contudo, quem pensa apenas em um reconhecimento a posteriori dos benefícios da censura por parte dos ministros. Não, podemos derivar a análise para o princípio da coisa. O famigerado inquérito das fake news foi aberto em março de 2019 e um mês depois já era possível contemplar seus efeitos nocivos. No dia 15 de abril de 2019, data digna de entrar para os anais dos vilipêndios à liberdade neste país “clássico da liberdade” (segundo acepção de Luís Gama), a revista Crusoé e, por extensão, o site O Antagonista, amanheceram sob censura. Três dias antes, em sua edição de número 50, a revista havia publicado a reportagem de capa intitulada “O amigo do amigo de meu pai”. A reportagem em questão baseou-se em um documento dos autos da Operação Lava Jato onde Marcelo Odebrecht, respondendo a um pedido de esclarecimento da Polícia Federal sobre a identidade de um personagem que ele cita em um email como sendo o “amigo do amigo meu pai”, afirmou tratar-se de Dias Toffoli.

Alguns fatos importantes para entender melhor o desenrolar da coisa: na época, Dias Toffoli ocupava a presidência do Supremo Tribunal Federal; Moraes, como relator do inquérito das fake news, foi incumbindo de dar a resposta, isto porque, a matéria, mesmo se baseando nos autos da Lava Jato, seria uma fake news. É o próprio Moraes quem informa que Toffoli “autorizou” a investigação sobre a matéria no mesmo dia em que ela foi veiculada. Reproduzo aqui a mensagem enviada por Toffoli a Moraes: “Exmo Sr Ministro Alexandre de Moraes, permita-me o uso desse meio para uma formalização, haja vista estar fora do Brasil. Diante de mentiras e ataques e da nota ora divulgada pela PGR que encaminho abaixo, requeiro a V. Exa. Autorizando transformar em termo esta mensagem, a devida apuração das mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras.” Logo retorno para as partes em negrito.

Cumprindo então Moraes o pedido do colega e presidente, determinou a retirada, leia-se censura, da matéria. Não posso deixar de mencionar o importante adendo de que estabeleceu também censura prévia (vedada em absoluto pela CF) ao tratar também de “todas as postagens subsequentes que tratem sobre o assunto, sob pena de multa diária de R$100.000,00 (cem mil reais)”.

Temos então que o presidente do STF à época, responsável pela abertura do inquérito das fake news, oportunamente catalogou como falsa uma notícia que lhe desabonava a imagem; pediu de forma personalíssima que seu colega, Moraes, desse um basta na audácia dos jornalistas, obtendo assim tanto a censura da matéria já publicada quanto a censura prévia do tema que tanto enfureceu o ministro. Se já é apropriado chamar isso de escândalo, apenas contemplem o fato de que, em maio deste ano, Toffoli anulou todos os atos da Lava Jato contra Marcelo Obebrecht. De forma muito conveniente para o empresário, que, vamos recordar, era réu confesso e um dos principais delatores da Operação Lava Jato, Toffoli, embora tenha anulado todos os ônus impostos àquele que o chamou de “amigo do amigo de meu pai”, manteve os bônus da delação premiada, a qual segue de pé. Antes que o digníssimo ministro Toffoli peça novamente a intervenção do colega e eu acabe me deparando com a Polícia Federal na porta da minha casa, reitero que não estou fazendo ilação alguma aqui, apenas relatando os fatos — se os fatos parecem indecorosos, certamente a responsabilidade não recai sobre o porta-voz. Lembremo-nos do célebre provérbio atribuído a Júlio César: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta.”

Mas o ponto que, ao mesmo tempo que escancara o patrimonialismo do pedido de Toffoli, expõe também um puro personalismo e é sintomático do modus operandi censório que se instalou no país, encontramos quando ele fala da “apuração das mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”. A um só tempo, ele provoca a demonização de veículos de imprensa que, tendo obtido informação de interesse público, fizeram não apenas bem, mas cumpriram sua obrigação ao publicá-la, e confunde a sua pessoa com as “instituições brasileiras”. Um mês, meus caros, apenas um mês da vigência do inquérito das fake news, e o presidente da suprema corte na ocasião o usava para tratar uma matéria pessoalmente incômoda como “ataque às instituições”. Pergunto: como a “eterna vigilância” pode ser exercida, bem como podemos ter uma democracia funcional, se homens públicos pretendem se livrar do escrutínio público, confundindo-se com a instituição que integram (que está sujeita ao mesmo escrutínio, a propósito) e tratando por “ataque às instituições” reportagens que lhes desagradem, bem como a mera crítica?

A possibilidade de censurar os críticos é coisa muito sedutora para ficar limitada ao Judiciário e temos outro exemplo, protagonizado agora, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

É fato público e notório que a ex-mulher de Arthur Lira fez acusações muito sérias ao deputado em entrevista concedida à Folha de S. Paulo em 2021. Ela o acusou de agressão física, alegando também que recuou do processo contra o ex-marido (que resultou na sua absolvição) por sofrer ameaças. O caso foi ressuscitado nas redes no bojo de críticas a Lira por patrocínio ao PL 1904/2024 que propõe a criminalização do aborto após 22 semanas. Irritado com a nova repercussão, Lira buscou o auxílio do censor-geral da República, argumentando que havia um “movimento orgânico” atuando com o propósito de “desestabilizar não apenas a figura política”, mas também “atingir o exercício da elevada função da Presidência da Câmara dos Deputados”. Aí está, novamente, a pessoa pública confundida com a instituição, e um agente estatal reivindicando a intervenção de outro agente estatal para um fim totalmente privado.

De imediato, Moraes aquiesceu com o argumento de Lira e determinou a censura de vídeos e reportagens tendo como conteúdo as acusações de Jullyene Lins, ex-esposa de Lira. Como cada decisão de Moraes é uma nova oportunidade para o panfletarismo, temos que: “Torna-se necessária, adequada e urgente a interrupção de propagação dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática mediante bloqueio de contas em redes sociais, com objetivo de interromper a lesão ou ameaça a direito”. Só faltou mesmo incluir a ex-mulher de Lira em algum dos famigerados inquéritos, que nunca têm fim, ou de tomar seu celular para investigar suas posições políticas, como fizeram com a família que cometeu o grande atentado de xingar Moraes em um aeroporto na Itália.

Dessa vez, algo inusitado aconteceu, e, no dia seguinte, Moraes recuou de sua decisão anterior, mantendo a censura apenas a um vídeo da Mídia Ninja no YouTube. Talvez isso tenha sido reflexo de algo ainda mais inusitado: críticas à decisão censória vindo da dita esfera “progressista”. É que Lira, pelo patrocínio ao PL 1904/2024, estava sendo visado por setores de esquerda, ao passo que o conteúdo censurado era o de uma mulher fazendo acusações ao ex-marido. Para muitos, ainda que contumazes defensores da “censura do bem”, isso era um limite. Mas é claro que nunca há limites e o pau que dá em chico dá em Francisco, se não hoje, amanhã.

Subjacente a tudo isso está o patrimonialismo brasileiro. Os ministros do STF incomodados com as críticas poderiam, sei lá, mudar de profissão; Dias Toffoli poderia se defender publicamente ou, no extremo, se entendesse que a matéria era difamatória, ingressar com uma ação em primeira instância como qualquer outro cidadão; Arthur Lira poderia se defender publicamente e, se fosse o caso, se entender na justiça com sua ex-mulher. Unindo estes casos está uma questão particular, portanto privada; mesmo naquilo que toca à imagem de ministros ou parlamentares, a queixa é privada, já que abalos à imagem são um ônus aceito ao ingressar na carreira pública. Contudo, ao invés de perseguir soluções privadas para suas queixas, viram no aparelho censório inaugurado por Moraes e Toffoli um mecanismo para desafogar suas mágoas. Usam o Estado para fins claramente particulares, para tal até mesmo hipertrofiando as funções desse Estado e se autoconcedendo um poder de censura antagônico à carta constitucional. Para a defesa pública desse arbítrio, esboçam também um personalismo que se confunde com o patrimonialismo: a confusão entre o público e o privado é facilitada pela confusão entre o indivíduo e a instituição que ele integra.

Admitindo, como penso ser forçoso admitir, que a censura está sendo posta a serviço do patrimonialismo no Brasil, fica patente que esses não foram e não serão casos isolados; e como poderiam ser? Dada a profunda penetração da lógica patrimonialista no Estado brasileiro, seria impossível que a censura, essa mesma já inaugurada por “conveniência”, estivesse alheia a essa lógica. Se, em qualquer canto do globo, a censura já é perniciosa, os efeitos dela, quando combinamos com a mescla nefasta entre interesses públicos e privados, como ocorre no Brasil, é uma receita pronta para um autoritarismo desmedido. Tanto é assim que, cinco anos depois da grotesca censura à revista Crusoé, nem Toffoli nem Moraes foram convidados a se explicar, sendo o impeachment (uma via muito apropriada aqui), ainda mais impensável. Se o Judiciário logra criar uma máquina censória sem nenhum contrapeso, talvez isso se explique por interesses também privados e não republicanos de parcela significativa dos legisladores que se furtam às obrigações de seus mandatos. Isso pode se dar tanto por terem teto de vidro e, de forma preventiva, não quererem desagradar a ministros que podem vir a julgá-los no futuro, simplesmente por medo, haja vista que a imunidade parlamentar já veio a óbito, ou por reconhecer que eles mesmos podem ser beneficiários da censura. O presidente da Câmara, pedindo que o STF lave a roupa suja entre ele e sua ex-esposa, não me deixa mentir. E ainda há os que pretendem legalizar e legitimar o modus operandi que tem sido pornograficamente adotado ao arrepio da lei. Pretendem dar aos “donos do poder”, ainda mais poder – e não qualquer poder, mas a faculdade de serem árbitros do que é verdade ou mentira. O que pode dar errado, não é mesmo?

*Gabriel Wilhelms é economista e articulista do Instituto Liberal.

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