Marcelo Ricardo Almeida
À VOLTA AO SPAGHETTI
Há meio século, na única sala de cinema em Santana, estreia “À volta pela estrada da violência” (1971), de Andrade. O conteúdo sob demanda no Cine Alvorada, que não existe mais, é revistado no smartphone; o filme é revisto por streaming (conteúdo on demand).
É a migração do cinema analógico ao digital. Cidade é um lugar de lembranças; Cine Alvorada, em Santana, representa o lugar da sétima arte à memória da cidade sertaneja; nas paredes da sala do cinema os desenhos traçados com simbolismos culturais: a história viva, uma exposição artística permanente. Movie bluetooth now: o Cine Alvorada agora cabe na palma da mão; cinema transfigurado; e tudo agora é smartmovie bluetooth now; informações múltiplas no mover das pálpebras; amanhã: filme na retina. Linguística é uma das ciências que estuda a verbalidade entre os povos.
O cinema, ao internalizar a semiótica, e por meio de signos fílmicos, diverte as massas com o que, – para Saussure é a langue (língua: sistema linguístico comum) e a parole (a fala de cada pessoa) nos fenômenos psicossociais –, a fala e a língua capazes de mostrarem ao povo algo que outra arte não alcança. Cinema faz-se por imagens e sons: arte imagética criada por quadros e planos nos quais objetos e personagens se mostram.
Cinéfilos em Santana, vendo o cinema de Hawks, Peckinpah, Leone, por exemplo, conhecem o cinema com a estreia no Cine Alvorada do longa-metragem “À volta pela estrada da violência”.
No mais distante torrão, as corujas soltam ruídos; um pano sendo rasgado; a noite chega ao Sertão; param casas de farinha, as moendas não moem; logo descem das serras tropéis: cavalos velozes; no silêncio da noite: canto dos carros de bois; e nessa hora o cinema constrói o voo das aves, os mundos possíveis.
Alguns planos na obra cinematográfica reconstroem o voo das aves. No plano geral aéreo, “À volta pela estrada da violência” (prêmio Coruja de Ouro, 1971) há um grupo a cavalo de winchester em punho que circunda uma praça defronte à igreja no centro da cidade, desce a R. Barão do Rio Branco em direção ao Panema e atravessa a ponte nova dialogando com “Rio Bravo” (1959), de Hawks, no plano em que ele mostra quando chega à cidade o bando do fazendeiro Burdette.
Atribui-se ao crítico Bazin a caracterização do gênero western estadunidense como gênero cinematográfico por excelência. O texto cinematográfico preenche as lacunas de fatos com lendas.
Mitologia, em seu caráter sociológico, trata-se de narrativas ritualísticas nas quais se perpetuam reverência aos deuses, semideuses e aos heróis. Cinema Novo (1950) é uma resposta brasileira ao cinema, é a sua dialética à sétima arte; complemento ao que o antropofágico representa à Semana de Arte Moderna (1922).
Este gênero mítico, western-spaghetti em Santana com “À volta pela estrada da violência”, começa em 1903 com o princípio do western em “The great train robbery”. Com a disseminação do celular que se multiplica em “Cineastas à vontade”, cabe às escolas a criação de clubes nos quais se propaguem diálogos sobre espaço e tempo presentes na sétima arte e amplie-se o currículo escolar tão classificatório e excludente.
E quase todos possuem uma câmera na mão; um sonho sonhado por Glauber Rocha torna-se cine realidade; é o fim do velho cinema no letreiro fine, the end no cinema em Santana; cada qual sua câmera (conversa, filma, publica, compartilha-se à vontade); tempo dessemelhança, e o Cine Alvorada agora existe só na lembrança. O tempo em movimento chama-se cinema. Numa sala, em setembro de 1971 “À volta pela estrada da violência” rodado em Santana, Maravilha, Atalaia, Pilar e Maceió; set de filmagem e externas entre o Agreste e a Zona da Mata.
E, nesta região, personagens fictícios armados correm em uma parede de arcos, e familiarizam-se ao filme de Peckinpah, “The Wild Bunch” (1969), quando personagens armados surgem na parede de arcos, no reduto de Mapache. Um destaque, durante as locações, é a sombra dum cavaleiro girando refletido numa poça d’água.
No filme, Geracina é personagem que conduz argumento e roteiro; a protagonista lembra a mãe no início de “The Godfather Part II” (1974), dirigido por Coppola. Geracina personifica a figura ontológica no teatro épico brechtiano e no cinema ópera de Coppola; uma mãe que interage com a ambiciosa e trágica Lady Macbeth, de Shakespeare.
Intertextualidade do filme em cartaz no Cine Alvorada aproxima-se daqueles dirigidos nos estúdios Cinecittà. Filmes produzidos naqueles estúdios permitem a Leone e a outros realizadores recriaram o gênero que se notabiliza como western-spaghetti faz Santana ver o seu filme que representa o Far Santana West; e nas ruas o seu povo, a sua gente no telão: no fórum, diante dos degraus da igreja pessoas em torno do semovente que traz nos caçuás os filhos de Geracina; e os santanenses ouvem Geracina à maneira do teatro épico brechtiano, à maneira do cinema ópera.
Palavra não faz poesia; poema é objeto de arte, objeto linguístico feito a cada efeito Eliot. Quem é a tia Salete? Não é tia Salete, é T. S. Eliot... Que faz da palavra cinema mudo, que faz Leone fazer western-spaghetti e faz Santana ver nas ruas de pedras, nas ruas de poeira o seu filme “À volta pela estrada da violência.”
Em Santana cheia de casas, cidade cenográfica de luz, cinematográficos candeeiros também fazem cinema ao luar. A época da realização de “À volta pela estrada da violência” dialoga com a época do western-spaghetti nos estúdios da Cinecittà.
Leone e outros renovam o gênero western nos estúdios da Cinecittà; é equivocado o prefixo de subgênero usado ao se referir ao mítico gênero western que atravessa o Atlântico e renasce na Itália com Leone e outros realizadores. Mimesis não reaparece em Aristóteles, na “Poética”? Cineastas reinterpretam a própria arte.
Leone comunica-se com Kurosawa, há entre Eastwood e Leone comunicação, a comunicação se reconhece entre Tarantino e Corbucci. O Cine Alvorada, em Santana, exibe “Città Violenta” (1970), com direção de Sollima; “Il Grande Silenzio” (1968), dirigido por Corbucci; “Per un pugno di dollari” (1964), na direção de Leone. Sob as cores da retina: A arquitetura na cidade nem sempre é abismo; e o senso do inacabado é parte da modernidade; nem sempre retinas veem os significados simbólicos; o princípio unificador na palavra é a poesia; e tudo é elipse e se fragmenta; Santana prisioneira existe na paisagem. Há parte no filme que parece haver menção a “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), de Rocha, que trabalha com figurantes onde se constroem as filmagens.
Outro cineasta que trabalha com figurantes nas locações, a exemplo de “Medea” (1969), é Pasolini – e Geracina, em diferentes aspectos, faz lembrar “Medea”, de Pasolini. Música-tema do gênero western-spaghetti, sob a batuta de Morricone, é outra crônica à parte. Música-tema e título do filme referenciam western-spaghetti dos Sergios Leone, Sollima e Corbucci, também referências de Castellari, Damiani, Baldi, Tessari, Rossetti, Valerii, Petroni, Santi.
É a memória quem preserva a história. Gerações que sucedem gerações, no espaço e no tempo do ex-Cine Alvorada testemunham o filme “À volta pela estrada da violência”; outra geração usa o celular e vai mais longe por meio de registros audiovisuais, nas redes. O fenômeno do bangue-bangue à italiana que influencia Presley, que inclui no elenco o ator ítalo-brasileiro Steffen, chega a Santana; e assim se fotografa uma época de cinema analógico possível revê-la numa plataforma digital: “À volta pela estrada da violência”: western-spaghetti realizado em Santana.
Marcello Ricardo Almeida – autor do livro Teatro na Escola no método Teatro-Feijão-Com-Arroz, Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011.