Marcelo Ricardo Almeida

A vocação das cidades é se autodevorarem
AUTODEVORAM-SE AS CIDADES PELA FOME DE SEU DESTINO ANTROPOFÁGICO?

As cidades são construídas para se autodevorarem, quão a natureza de alguns animais (lagartixa, v.g.). A cidade tem por natureza a mutação. Ela alimenta-se dela própria. Destrói lugares e os reconstrói. Mudam-se os espaços.
Ruas abrem-se para avenidas. Cortiços são transferidos. Favelas aparecem onde não existia.
Na pressa, as lojas comerciais estão em mutações. Os monumentos públicos são inaugurados na mesma velocidade na qual são esquecidos.
Disputas políticas, disputas filosóficas. A cidade e os seus típicos fenômenos culturais.
O que existe agora, talvez não chegue até amanhã. Se a História preenche as suas lacunas com invencionices, a memória da cidade tem falhas leves, moderadas, graves. A cidade que não para, integrada à natureza, como todas as coisas, ela está viva, movimenta-se, transforma-se.
Este pequeno animal catenga (lagartixa), com fome, devora a própria cauda. Além de ter habilidades mutantes para se livrar de predadores.
A cidade-lagartixa e o artista plástico que pinta a cidade sobre a tela na qual há outra pintura. A cidade-catenga e o artista da palavra que escreve e reescreve e apaga e outra vez escreve.
Praça Manoel Rodrigues da Rocha, na década de 60 (Foto: Arquivo Darras Noya / José Neto)
A cidade, se comparada à lagartixa, é a cidade-lagartixa. Com o seu quadro pictórico, a cidade tem pinturas justapostas, camada após camada, até o pintor se desfazer do que começou a fazer.
A primeira pintura para a qual o artista plástico foi contratado a fazê-la e não recebeu; pintou outro quadro sobre a pintura original; e, quando não tinha mais tela, outra vez usou a mesma para figurar as suas impressões de um monumento que ocupa o velho centro no mercado público.
A cidade nunca para de ser construída, reconstruída, de devorar a sua própria cauda, de hoje ser uma, de amanhã ser outra, de prédios engolirem prédios, de pontes devorarem pontes. É sempre inacabada a cidade.
E se a cidade parar de devorar-se, morre por inanição, vira cidade apagada. São os sentimentos da cidade, assim também da arte pictórica.
A cidade com seus monumentos públicos. Os olhos das pessoas têm o poder do diálogo com monumentos públicos, descobrirem o pitoresco na arte pública.
Centro de Santana do Ipanema em 2015 (Foto: A2 Produtora / Alagoas na Net)
Os novos monumentos, semipúblicos, porque parte do investimento na obra de arte é financiada com “iniciativa” particular, da sociedade civil, são mais visíveis na urbe se comparados aos monumentos clássicos que perderam a identificação com os moradores da cidade e tornaram-se “invisíveis”, sem interagibilidade. Os novos monumentos, com interagibilidade, são representados por peças típicas do conceito moderno de arte.
Existem velhos monumentos e novos; aqueles são estatais, onde o artista é ou foi contratado e a peça artística passa a ser integralmente incorporada ao poder público e ao domínio público, são monumentos representados por figuras “importantes” a cavalo ou a pé, que apontam para a vitória em pose de herói ou de grande pensador e defensor do povo, em nome da ciência, da história, da política etc., além de peças e figuras com outros motivos, religiosas inclusive, construídas, geralmente, em bronze, ocupam pedestal em granito, no centro da praça; muito abundante até o século XX.
Existem o monumento e o não-monumento ou a “invisibilidade” dos monumentos públicos na cidade. O não-monumento, porque ele existe e não existe; existe porque ocupa um espaço público (uma praça, por exemplo), porém, não existe, pois não faz parte do lugar, não aparece no tempo presente, nem a cidade o reconhece, tampouco se traduz aos seus moradores.
Praça Manoel Rodrigues da Rocha, em 2021 (Foto: Reprodução / Instagram / Santana do Ipanema)
Se alguns monumentos são calados, alguns monumentos falam mais se comparados a 1000 palavras
(Marcello Ricardo Almeida é autor de “A escola lê pouco? Só há escola havendo leitura, sem leitura não há escola”)
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